Meio século após sua morte, Herzog tem legado preservado em filme e IA
Assassinato do jornalista gerou grande mobilização contra a repressão Brasil e Mundo | Por Agência Brasil 25/10/2025 10h27 |Há exatos 50 anos, o jornalista Vladimir Herzog, o Vlado, apresentava-se voluntariamente no Departamento de Operações de Informações - Centro de Operações de Defesa Interna (DOI-Codi), órgão de repressão da ditadura militar subordinado ao Exército, onde foi preso sem ordem judicial. Horas depois, após ser interrogado sob tortura, foi morto pelo Estado brasileiro, em 25 de outubro de 1975. O assassinato do então diretor de Jornalismo da TV Cultura foi um marco que gerou grande mobilização contra a repressão e também de luta pela democracia.
Cinco décadas após sua execução, produções inéditas contribuem para a preservação do legado de Vlado, incluindo o lançamento de documentário e podcast sobre sua vida, além de uma ferramenta que utiliza inteligência artificial (IA) para simular respostas na voz de Vlado, com base em um acervo de produções do jornalista.
O documentário A Vida de Vlado – 50 anos do Caso Herzog, produzido pela TV Cultura, vai ao ar na emissora, neste sábado (25), a partir das 23h. A produção, que traz materiais inéditos, conta a história da família Herzog e a vida de Vlado até sua morte, além de mostrar o legado do jornalista, que é preservado pelo Instituto Vladimir Herzog (IVH).
O lançamento oficial ocorreu nessa sexta-feira (24), na 49ª Mostra Internacional de Cinema em São Paulo. O pôster feito especialmente para o evento tem uma foto inédita de Vlado, ao lado de sua esposa e os dois filhos, tirada dias antes de sua morte.
Diretora de Jornalismo da TV Cultura, Marília Assef contou que o filme traz fotos e documentos inéditos, além de entrevistas com pessoas que trabalharam e conviveram com Vlado. “O arquivo usado foi vasto, aqui da TV Cultura e do instituto. Tem muita foto que o Instituto Vladimir Herzog recebeu ultimamente, slides do filme que ele estava fazendo sobre Canudos. Tinha slides inéditos do Vlado, que agora foram recuperados pelo instituto”, diz.
“A importância [do filme] é contar a história do Vlado, por isso o documentário tem esse nome. A gente conta o que ele gostava de fazer, quem ele era, a importância dele como pessoa, como jornalista, as vontades e os desejos dele.”
A diretora lembra a relevância do jornalista para a história do país, ao avaliar que seu assassinato teve grande impacto para a transição democrática pós-ditadura militar.
O documentário resgata ainda filmes raros gravados durante o culto ecumênico na Catedral da Sé, em 31 de outubro de 1975, e no descerramento do túmulo de Herzog, no cemitério Israelita do Butantã, um ano após sua morte.
Neste domingo (26), a Praça Memorial Vladimir Herzog, no centro de São Paulo, receberá uma intervenção permanente chamada Calçadão do Reconhecimento. No piso, haverá a instalação dos nomes de todas as pessoas e coletivos vencedores do Prêmio Jornalístico Vladimir Herzog de Anistia e Direitos Humanos, um dos mais importantes do país.
Uma das homenagens será ao conjunto dos trabalhadores da Empresa Brasil de Comunicação (EBC), que recebeu, em 2022, o Prêmio Especial Vladimir Herzog Contribuição ao Jornalismo, pela resistência na defesa da comunicação pública. O reconhecimento decorreu da atuação dos profissionais durante o governo de Jair Bolsonaro, quando a censura, o governismo e a perseguição foram disseminadas na empresa.
A foto e a farsa
No podcast O Caso Herzog: A Foto e a Farsa, o jornalista Camilo Vannuchi entrevista o fotógrafo Silvaldo Leong, que fez a imagem do corpo de Vlado pendurado no DOI-Codi. A produção conta também com entrevistas, documentos e áudios inéditos, além de análises que contextualizam o Brasil da ditadura e suas marcas no contexto atual, e está disponível nas plataformas de streaming.
“A foto é uma farsa, uma farsa muito violenta, porque foi simular um suicídio com o Herzog pendurado numa janela com o suposto cinto de pano que faria parte do uniforme dos presos na carceragem do DOI-Codi, mas na carceragem não tinha cinto, nem de pano, nem de qualquer outro material, ninguém usava cinto”, relata Camilo Vannuchi.
Além disso, Vlado era mais alto do que a janela em que foi pendurado, ficando com joelhos dobrados e os pés arrastando no chão. “É toda uma situação inconcebível, segundo os especialistas, os médicos, não dá para se matar se pendurando de uma altura menor do que você mesmo.”
Como Vlado era judeu, em caso de suicídio – como dizia a versão oficial da época –, ele deveria ser enterrado em local específico, de acordo com a tradição religiosa. No entanto, no processo de preparação do corpo, conta Camilo, um funcionário procurou o rabino Henry Sobel, para relatar que havia hematomas e escoriações no corpo. “Ele fala isso ao telefone, e o Henry Sobel fala ‘não, ele não se matou, vamos enterrar na área nobre’”, conta Vannuchi.
O jornalista Paulo Markun, amigo de Vlado, que também estava preso no DOI-Codi na data da morte, relata que houve até um inquérito para mascarar o assassinato. “Tudo isso era uma farsa e uma ficção, a gente tentou argumentar mas eles [agentes do DOI-Codi] insistiam que ele tinha se matado”, diz ele, que também era colega de Herzog na TV Cultura.
Markun lembra que eram “24 horas por dia ouvindo gritos das pessoas apanhando” no local. “Quando [fui levado], já cheguei num local que era um centro de tortura. Não era uma delegacia, não tinha um escrivão, nada disso. Era a violência desde o início.” Ele reforça que todos os detidos usavam macacão sem cinto, o que ajuda a desmentir a farsa do suicídio, com uso de um cinto, montada pelos militares.
Inteligência artificial
Na sua atuação profissional, Markun desenvolveu uma ferramenta, com uso da inteligência artificial, que cria respostas a partir de materiais produzidos por Herzog ao longo de sua vida. “É um conjunto de livros, reportagens, textos do Vlado, cartas que ele escreveu, organizados numa base de conhecimento, sobre a qual a inteligência artificial responde com a voz do Vlado”, explica.
Quando o usuário faz uma pergunta ao avatar construído a partir da voz clonada de Herzog, a plataforma faz uma busca na base de conhecimento a partir de palavras-chave, e a inteligência artificial constrói a resposta em texto, que é transformada em áudio instantaneamente. A ferramenta será apresentada em evento que discutirá como a inteligência artificial pode servir à preservação da memória, nos dias 30 e 31 deste mês, no Centro de Pesquisa e Formação do Sesc-SP.
Para Markun, essa é mais uma maneira de apresentar a história de Herzog, por meio de um novo formato.
“É uma voz clonada do Vlado a partir do pequeno trecho [da voz original] que há disponível, e permite que esse avatar responda a qualquer pergunta sobre ele, sobre a trajetória dele e a carreira, a biografia, os projetos, os textos e o cenário político, até a manhã do dia 25 de outubro de 1975, quando ele se apresenta no DOI-Codi”, destaca.
O jornalista avalia que as iniciativas em torno da rememoração dos 50 anos da morte de Vlado são uma demonstração de que, mesmo entre diferentes posições políticas e crenças, há o entendimento comum de que algumas premissas devem ser asseguradas. “A primeira delas é o respeito ao voto popular. A segunda, casada com isso, é que direitos humanos são fundamentais. A terceira é que a liberdade de expressão é essencial”, enumera.
“O que levou à derrota da ditadura foi o entendimento de que pessoas que pensam diferente podem se unir em torno dessa ideia de que a democracia é importante e que a ditadura é inaceitável”, lembra, ao citar o ato inter-religioso que ocorreu sete dias após o assassinato de Herzog e que se repetirá neste sábado (25), às 19h, na Catedral da Sé.
Frente democrática
Em 31 de outubro de 1975, mais de 8 mil pessoas se reuniram na Sé para um ato em homenagem a Herzog, conduzido por líderes religiosos como o cardeal Dom Paulo Evaristo Arns, o rabino Henry Sobel e o reverendo Jaime Wright, com o apoio do jornalista Audálio Dantas, então presidente do Sindicato dos Jornalistas de São Paulo. O evento tornou-se símbolo da resistência democrática.
Segundo Paulo Markun, na época, uma frente ampla se formou também no âmbito político. “Naquela primeira manifestação e ao longo do tempo, foi-se construindo algo que já vinha sendo desenhado na eleição de 1974, que era a criação de uma grande frente democrática, da qual participavam a esquerda, os comunistas, outros grupos foram se aproximando.”
“Tancredo Neves, Ulysses Guimarães, Thales Ramalho e Pedro Simon, nomes que nada tem a ver com a esquerda, [se uniram em torno da] ideia de que era preciso derrotar a ditadura e que essa derrota se daria pela participação de ampla massa da população brasileira. Isso deságua na campanha das Diretas em 1984 e na eleição do Tancredo Neves”, diz o jornalista sobre o movimento de virada para a redemocratização.
