Africanos Escravizados: fuga e resistência em Sergipe, século XIX.
O historiador Amâncio Cardoso relembra anúncios para a busca de fugitivos Cotidiano 18/11/2023 18h00 |Amâncio Cardoso*
“O cativo enfrenta, em todos os lugares e momentos, a agressividade de seus donos
e senhores. A consequência são os levantes e, mais generalizadamente, as fugas”.
(Ariosvaldo Figueiredo. O Negro e a violência do branco.
(o negro em Sergipe). Rio de Janeiro: J. Álvaro, 1977. p. 84.
No Brasil, as fugas de pessoas escravizadas eram recorrentes. Elas representavam estratégias de resistência ao cativeiro. E em Sergipe, essa prática foi também utilizada em todo período escravagista, sobretudo entre africanos que tinham maior dificuldade de adaptação à nova realidade.
No século XIX, surgiram jornais com anúncios que serviram de expedientes utilizados pelos escravistas para ajudar na captura dos fugitivos e complementar outras formas de busca, tais como as batidas pelos capitães do mato ou pela polícia, e a indicação de informantes.[1]
As notas de fugas são testemunhos que trazem descrições físicas e morais dos escravizados, tais como doenças, sinais, procedência étnica, nome, idade presumida, estado civil, habilidades ou profissões, objetos carregados, rede de relações, estratégias, além de vícios e virtudes dos cativos, conforme, é óbvio, a apreciação dos proprietários.
Apesar dessa perspectiva, os anúncios constituem-se ricas fontes para a pesquisa acadêmica, cujas potencialidades já foram apontadas pelo estudioso Gilberto Freyre (1900-1987); e no âmbito local, pelo historiador Luiz Mott.[2]
Examinemos, assim, alguns anúncios de fuga de africanos registradas em jornais sergipanos.
Um dos predicados que primeiro assoma nos anúncios é a origem étnica. Por exemplo: Luíza, de “nação cassange”, fugiu a seu senhor da cidade de São Cristóvão-SE em 1840.[3]
O reino Cassange localizava-se no centro-norte da atual Angola. Um de seus reis recusou-se em continuar a prestar vassalagem aos portugueses, declarando a independência. Com isso, os lusitanos esmagaram os sublevados Cassange em 1862, após várias guerras.[4] Neste sentido, Luíza pertencera a um reino bastante beligerante e que sempre lutara por liberdade. Portanto, ela não se submeteria facilmente aos trabalhos forçados aqui no Brasil.[5]
Ao lado da origem territorial e/ou étnica, os anúncios descreviam sinais ou marcas dos escravizados que serviam como meio facilitador de sua identificação. Uma “africana de nação nagô”, por exemplo, possuía “diversos sinais de sua terra pelas costas e rosto”. Ela fugiu em 1847 a José Teixeira Lobo, “morador na vila de Itabaiana”.[6] Já Antônio, também “de Nação Nagô”, possuía “pequenos sinais jejes”. Ele fugiu em 1842 de um sítio próximo à vila do Socorro.[7]
Sobre a identificação desses grupos étnicos havia uma problemática, dentre outras, comentada por Roger Bastide (1898-1974). Ele argumentou que o escravagista impunha frequentemente ao escravizado não o nome de sua verdadeira etnia, mas aquele do porto de embarque. Por exemplo, chamava-se indistintamente de “Mina” a todos aqueles que passavam pela Fortaleza de São Jorge da Mina, localizado na atual cidade de Elmina, Gana; fossem ashanti, ewes ou yorubás.[9] Por isso, Bastide propôs uma metodologia invertida para análise de etnias afro-americanas, consistindo “não em partir da África para verificar o que resta na América, mas em estudar as culturas afro-americanas existentes, para remontar progressivamente delas à África”.[8]Além da origem e sinais étnicos, os anúncios de fuga também traziam perfis morais. O jovem Horácio, por exemplo, de “nação Angola”, foi descrito como sendo “muito ladino”, a ponto de disfarçar que não era africano, dificultando sua captura.[9]
O chamado “ladino” era aquele escravizado considerado muito esperto, inteligente, vivaz; ao contrário do “boçal”. O ladino já falava bem o português e conhecia os costumes locais, ou seja, apresentava certo grau de aculturação.[10]
Outro dado constante nos anúncios de fuga são as redes de solidariedade ou de proteção que se formavam para “ocultar” os que fugiam. Suzana, de “nação Nagô”, por exemplo, escapou em 1849 da casa do vigário de Divina Pastora, Francisco José Travassos, e teria se escondido em São Cristóvão, conforme o anunciante, por ter “conhecidos” na antiga capital, onde trabalhava para o major Alexandre da Cruz Brandão.[11]Diversas foram as reclamações das autoridades policiais contra as redes de proteção ou solidariedade por “acoutar”, como se dizia à época, os escravizados fugitivos. Um exemplo desse tipo de reclamação foi registrado pelo chefe de polícia de Sergipe, Manoel José Espínola Júnior, em relatório ao presidente da província em 1873.
O chefe de polícia escreveu que mesmo com o esforço do tenente do Corpo de Polícia, João Batista da Rocha, na captura dos fugitivos nas diversas diligências procedidas, os resultados não correspondiam ainda aos esforços empregados. E um dos principais motivos, conforme a autoridade policial, seria porque alguns proprietários num “deleixo [sic] criminoso não só deixam que esses escravos se acoutem em suas terras, como também não impedem que se relacionem com os que possuem em seu engenhos, o que é de grande proveitos àqueles [fugitivos], que não podem ser apreendidos sem grande dificuldade”.[12]
As habilidades nos serviços ou profissões também eram anunciadas. Um exemplo foi o de João, de “nação Cabinda”, classificado como “marinheiro”. Ele fugira da vila de Maruim. Lembremos que, sendo João homem do mar, ele evadiu-se de um lugar banhado pelo rio Ganhamoroba, bacia do Sergipe, então principal barra da província e movimentado empório comercial, onde embarcações tinham contato com portos de Salvador, Penedo e Recife. Entretanto, o anunciante não detalhou se João fugira por terra ou por água.[13]Para fugir ao cativeiro, eram utilizadas diversas estratégias. Uma delas era a fuga de casais. Um escravizado de “nação Angola”, por exemplo, fugiu do engenho Lagartixa, em Capela-SE, três dias após a fuga de sua esposa, Quitéria, em 1853. Outro casal, Thomé e Antônia, estavam também fugidos há dois anos da cidade de São Cristóvão, entre 1846 e 1848.[14]
Conforme o historiador Robert Slenes, “a família escrava provavelmente ajudou muitos cativos a conservar sua identidade e a lidar eficazmente com as pressões psicológicas da escravidão”. Porém, ao mesmo tempo, ela forneceu aos proprietários “um poderoso instrumento de controle social”.[15]
Por fim, dentre as várias informações contidas nos anúncios de fuga, uma das mais recorrentes eram as doenças ou suas marcas no corpo dos escravizados. Exemplo disso é o do idoso “africano” Pedro, conhecido por “Gambari”, fugido da cidade de São Cristóvão em 1864. Ele possuía uma “cara bexigosa”.[16]
Bexigas, ou varíola, é uma doença contagiosa e que se caracteriza por erupções de bolhas pelo corpo, convertendo-se em grandes “pústulas purulentas, que se dessecam e deixam manchas vermelhas, às quais sucedem cicatrizes aparentes”.[17]
A varíola foi uma das grandes epidemias do século XIX. Muitos escravizados adquiriram a doença dentro dos navios negreiros, durante a travessia do Atlântico, devido às péssimas condições de higiene e alimentação. A varíola também foi considerada uma das doenças mais mortíferas do continente americano.[18]
Como se vê, os anúncios de fuga, publicados em jornais do século XIX, são fontes imprescindíveis para se entender as nuances e os diversos aspectos da sociedade escravocrata que constituiu, durante séculos, nossa formação.
Até hoje, o sistema escravista deixou marcas indeléveis que afligem substancial parcela da população. Portanto, devemos aprender, através da análise dos documentos históricos, que os direitos constitucionais das pessoas, de qualquer etnia, devem ser garantidos e respeitados, para afastar de vez o espírito escravagista que ainda habita, cotidianamente, em muitos de nós.
Notas e referências:
* Historiador e professor do IFS.
[1] CARDOSO, Amâncio. Escravidão em Sergipe: fugas e quilombos, século XIX. Revista do IHGSE. Aracaju, nº 34, p. 55-73, 2005.
[2] FREYRE, Gilberto. O escravo nos anúncios de jornais brasileiros do século XIX. Recife: Imprensa Universitária, 1963; MOTT, Luiz. O escravo nos anúncios de jornal de Sergipe. Revista do IHGSE. Aracaju, n. 29, p. 133-147, 1983-1987.
[3] Correio Sergipense. São Cristóvão, 14 de novembro de 1840, nº 232, p. 04.
[4] PÉLISSIER, René. História das Campanhas de Angola: resistência e revoltas, 1845-1941. Lisboa: Estampa, 1986.
[5] Além da etnia Cassange e da designação geral de “africano”, encontramos nos jornais sergipanos anúncios com outras denominações étnicas e/ou territoriais, tais como: angola; jêje; nagô; congo e cabinda.
[6] O anúncio não traz, curiosamente, o nome da africana que fugiu. Apenas a identifica com o nome do proprietário, da vila e do dia em que fugiu, um domingo de Páscoa em 1847 (Correio Sergipense. São Cristóvão, 30 de junho de 1847, nº 48. p. 04).
[7] Correio Sergipense. São Cristóvão, 14 de setembro de 1842, nº 383, p. 04.
[8] BASTIDE, Roger. As Américas Negras: civilizações africanas no Novo Mundo. São Paulo: Difel, 1974. p. 12-14.
[9] Correio Sergipense. São Cristóvão, 28 de julho de 1847, nº 56. p. 04.
[10] “Ladino”. MORAES e SILVA, Antônio de. Dicionário da Língua Portuguesa. 3. ed. Lisboa: Typographia de M. P. de Lacerda, 1823, Tomo II, p. 140.
[11] Correio Sergipense. São Cristóvão, 19 de maio de 1849, nº 34. p. 04.
[12] ESPÍNOLA JÚNIOR, Manoel José. Relatório do chefe de polícia ao presidente da província. [Aracaju], 26 de fevereiro de 1873. p. 06. Neste mesmo relatório, consta que os policiais haviam capturado 14 escravizados: “8 no Rosário, 4 em Divina Pastora e 2 em Laranjeiras”.
[13]Correio Sergipense. São Cristóvão, 20 de agosto de 1851, nº 59, p. 04.
[14] A União Liberal. Estância, 16 de fevereiro de 1853, nº 51, p. 04; Correio Sergipense. São Cristóvão, 28 de junho de 1848, nº 47. p. 04.
[15] SLENES, “The Demography”, p. 414. Apud MOTTA, José Flávio. Pessoas que eram coisas que eram pessoas... e cultivaram, não obstante, suas relações familiares. Afro-Ásia, 48 (2013), p. 425-431, citação p. 427. Um estudo pioneiro e inovador sobre a organização da “família escrava” no Brasil é o livro do professor da Unicamp, Robert Wayne Slenes. Na senzala uma flor: esperanças e recordações na formação da família escrava. Brasil-Sudeste, século XIX. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1999, 288p.
[16]Correio Sergipense. Aracaju, 01 de outubro de 1864, nº 77, p. 04.
[17] CHERNOVIZ, Pedro Luiz Napoleão. Diccionario de medicina popular. 6. ed. Paris, A. Roger & F. Chernoviz, 1890. p. 325, v. 02.
[18] BARBOSA, Benedito Carlos Costa. Da África ao Grão-Pará: a varíola na travessia do Atlântico. Anais do XXIX Simpósio Nacional de História. Brasília: Anpuh, 24 a 28 de julho de 2017. 13p. Um texto clássico sobre a relação entre comércio de escravizados pelo Atlântico e a transmissão de varíola nos navios é o de ALDEN, Dauril & MILLER, Joseph. Out of Africa: The slave trade and the transmission of smallpox to Brazil, 1560-1831. Journal of Interdisciplinary History. vol. XVIII, nº 2 (1987), p. 195-244.





